Quando se faz qualquer abordagem sobre Fé, relacionada direta ou indiretamente com Razão, Conhecimento ou Ciência, tem-se em mente uma consideração objetiva ou até mesmo subjetiva acerca da pessoa de Deus. Efetivamente, tudo o que se refere à fé e à razão visa, no seu fim principal, à pessoa de Deus e seu relacionamento não só com o ser humano como também com todas as coisas, quer materiais ou imateriais.
É nas Escrituras Sagradas que se encontra a mais rica conceituação de fé, a saber: “Ora, fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova segura das coisas que não se veem.” (Hebreus 11.1). Ora, do ponto de vista básico, a fé é uma certeza, quer seja ela natural ou sobrenatural. Sua fonte é o próprio Deus, sendo Jesus, o Logos de Deus, o autor e consumador dessa fé. Portanto, os que creem em Deus e creem em Jesus Cristo, o Logos de Deus, podem dispor dessa fé, já que ela é uma forma de energia legada por Deus aos que o buscam, e que foram por ele gerados mediante o Logos.
Não se pode esperar que a fé seja entendida simplesmente à luz de um empirismo científico, já que ela é o fundamento de toda a esperança daqueles que creem, sendo ainda a garantia das coisas futuras que os olhos humanos não veem. O termo grego upostasis empregado no texto neotestamentário pelo autor da Epístola aos Hebreus dá a ideia de uma base infraestutural cuja essência é por ela garantida e afirmada ontologicamente.
Em geral, os teósofos procuram fazer distinção entre a fé e a manutenção de uma proposição provável, pelo fato de que esta última pode ser algo completamente teórico. Todavia, segundo Emmet, “[...] é somente uma resposta volitiva que nos tira da atitude teórica.” Já segundo Thompson, “O traço distintivo de fé, em contraste com simples crença, é o elemento em si da vontade e da ação [...]. Fé não é simplesmente assentir que algo é verdadeiro; é a nossa prontidão em agir naquilo que cremos ser verdadeiro.” Pode-se observar por trás destas declarações traços de uma linha filosófica anterior a Tomás de Aquino, quando se via “fé como um ato do intelecto movido pela vontade.”
Efetivamente, ao se fazer uma abordagem sobre fé, encontra-se uma série de pensamentos teológicos, alguns dos quais, apesar de simples de mais para serem sustentados, não encontram refutação, em confronto com a razão ou com o conhecimento. Em Pascal, cientista e filósofo francês, por exemplo, encontra-se em uma de suas obras, intitulada Penseés, sob o Art. II, o seguinte argumento:
“Examinemos, pois, esse ponto, e digamos: Deus é, ou não é. Mas, para que lado penderemos? A razão nada pode determinar aí. Há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Que apostareis? Pela razão, não podeis fazer nem uma nem outra coisa; pela razão, não podeis defender nem uma nem outra coisa.”
À luz da proposta de Pascal, verifica-se que, “do ponto de vista de nossa capacidade cognitiva, o problema da existência divina deve ser colocado juntamente com a questão se a moeda cairá com a ‘cara ou coroa’ para cima.” Trata-se, pois, de uma questão que a inútil razão não poderá de forma alguma decidir. Na proposta de Pascal, a escolha de crer ou não crer é assemelhada a um jogo de sorte. Hick infere de Pascal: “No nosso cassino de jogadas cósmicas não podemos evitar apostar se Deus existe ou não existe.”
É certo que, do ponto de vista meramente metafísico, a fé não pode ser entendida e muito menos sentida por alguém. Na resposta dada por Jesus a Nicodemos, quando este o procura com evasivas, o Mestre, orientando-o, afirma: “[...]: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” (João 3.3). Confuso acerca da expressão “nascer de novo,” Nicodemos ouve a explicação de Jesus que lhe declara:
“[...] Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.” (João 3.5-8).
A noção metafísica que o homem pode ter da declaração acima está justamente no fato de ser ela uma verdade racional, ou seja, uma verdade conhecida pelo Logos cuja certeza e evidência são por ele reconhecidas e que constituem a chave do conhecimento real, tal como este verdadeiramente é, e não como aparenta ser.
Para que Nicodemos conhecesse e experimentasse essa verdade, necessitava crer, tendo fé naquele que lhe transmitia tal verdade, partindo do princípio do conceito mais tarde exposto pelo autor da Epístola aos Hebreus (Hebreus 11.1). Esta foi a verdade descoberta pelo profeta Elias ao confrontar os profetas de Baal, quando teve certeza da resposta divina para incendiar o altar e queimar a oferenda que ali havia sido colocada, de modo a deixar evidente o poder de Deus como realmente é, e não como aparentava ser, em função da descrença dos infiéis pagãos e da dúvida dos judeus incrédulos (I Reis 18.20-39).
A Fé, portanto, pode ser entendida e praticada, não só como fé pragmática, mas também, como fé ministrada por alguém que se torne religioso. Os seguidores da divindade fenícia não tinham uma fé pragmática, fruto de uma ação repetida capaz de envolver os que a seguiam. Eram capazes de se lancetar e dar gritos, mas não eram capazes de ter fé suficiente para ver os resultados que estavam sendo propostos pelo profeta Elias. Eram religiosos que conheciam apenas a fé ministrada pelos seus sacerdotes. O mesmo não acontecia com os hebreus cuja fé era pragmática porque era fruto de uma realidade não só ministrada, mas evidenciada pelos fatos que a todo instante testemunhavam. Sua fé era sobrenatural e podia ser evidenciada a partir do momento em que surgisse uma proposta como a do profeta Elias.
A Confiança que aquele profeta tinha de que Deus seria capaz de responder às suas orações e realizar de modo sobrenatural aquele feito por ele proposto diante dos dois lados antagônicos, era um ato de fé fiduciária[1], já que, para o profeta, o Senhor Deus era digno de confiança e tinha poder suficiente para realizar o que estava proposto diante do povo de Israel. Já a fé dos adoradores de Baal, divindade fenícia, era uma fé até certo ponto supersticiosa, embora tivesse uma implicação religiosa, uma vez que a manifestação da natureza contribuía para o culto àquela divindade. Se houvesse uma boa colheita, atribuíam-lhe esse fato e, assim, ofereciam-lhe culto e o adoravam; se houvesse perda da colheita, entendiam tal resultado como um castigo da divindade, por não tê-la adorado como deviam. Ao declararem guerra a outro povo, seus adoradores depositavam-lhe fé, mesmo sabendo que os outros povos também tinham seus respectivos deuses e possuíam fé neles. Os filisteus, inimigos dos hebreus, adoravam a Dagon, mas reconheciam a força do Deus de Israel e, diante da ameaça desse povo que os enfrentava, temeram, e seus líderes passaram a incentivar seus guerreiros, como registra o profeta Samuel:
“[...] quando souberam que a arca do Senhor havia chegado ao arraial, os filisteus se atemorizaram; e diziam: Os deuses vieram ao arraial. Diziam mais: Ai de nós! Porque nunca antes sucedeu tal coisa. Ai de nós! Quem nos livrará da mão desses deuses possantes? Estes são os deuses que feriram aos egípcios com toda a sorte de pragas no deserto. Esforçai-vos e portai-vos varonilmente, ó filisteus; para que porventura não venhais a ser escravos dos hebreus, como eles o foram vossos; portai-vos varonilmente e pelejai.” (I Sam 4.6-9).
A fé deveria ser acompanhada de um comportamento ético, moral e religioso, com prestação de culto e adoração ao Senhor Deus de Israel, o único Deus de fato em quem deveriam depositar sua confiança (fiducia) e crer em sua existência como Deus único e Criador de todo o Universo (fides). O Shemá,[2] tão conhecido dos hebreus, e que representava a profissão de fé central do monoteísmo judaico, fora esquecido algumas vezes, culminado com o péssimo estado moral, ético e religioso do povo hebreu. Esse comportamento negativo causava a ira do seu Deus, desagradando-o por completo, já que, para agradá-lo e viver bem com ele e usufruir dele e de suas bênçãos, é preciso ter os dois tipos de fé – fides e fiducia (Hebreus 11.6).[3]
[1] O modelo de fé fiduciária é parte da filosofia contemporânea americana onde se vê uma correspondência direta entre o que deposita fé e o fiel, em quem a fé é depositada. Esse modelo de fé é rejeitado por Paul Tillich que preferiu a este o modelo de fé ontológica.
[2] Shemá Israel (em hebraico שמע ישראל; "Ouça Israel") são as duas primeiras palavras da seção da Torá que constituem a profissão de fé central do monoteísmo judaico, encontradas em Deut. 6.4-9.
[3] “Fides” e “fiducia” são termos latinos incrementados na liturgia romana que significam respectivamente os dois tipos de fé: fé na existência de Deus e fé confiança.